quinta-feira, 18 de junho de 2009

A CRISE E AS DESIGUALDADES DE GÊNERO


A crise e as desigualdades de gênero

Por Nalu Faria*


Nesse artigo analisamos as relações entre a crise e as desigualdades de gênero, tomando por base o conceito de Divisão Sexual do Trabalho, tal como define Daniele Kergoat. Queremos ir além dos impactos e ver como as relações de gênero estão no coração do sistema, sustentando as relações econômicas.

Para enfrentar a crise do modelo capitalista, do ponto de vista das mulheres, são necessárias mudanças em relação à Divisão Sexual do Trabalho, e não apenas rearranjos.

De acordo com Kergoat, homens e mulheres são dois grupos sociais engajados em uma relação social específica – relações de gênero – que tem como base material a divisão sexual do trabalho. Essa divisão social do trabalho tem dois princípios organizadores – o da separação (que separa trabalho de homens e de mulheres) e o da hierarquização, em que o trabalho do homem vale mais que o da mulher. Esses princípios permanecem os mesmos, mas suas modalidades mudam significativamente no tempo e no espaço1.

O debate da economia feminista aponta para uma grande mudança nas relações de gênero quando incorpora a divisão sexual do trabalho como estruturante no modo de produção capitalista. Isso significou a naturalização do trabalho de reprodução da vida e estabeleceu uma redução do conceito de trabalho àquele executado na esfera mercantil. Dessa forma, considera-se uma externalidade ao modelo a grande quantidade de trabalho doméstico e de cuidados realizados pelas mulheres no âmbito da família.

A economia feminista buscou desvendar os mecanismos que invisibilizam o aporte econômico das mulheres e deslocam suas demandas para o terreno do social.

No início da globalização neoliberal eram perceptíveis as mudanças advindas das lutas feministas e, ao mesmo tempo, as diferentes formas como o capitalismo se utilizou dessas mudanças.

É inegável que houve uma ampliação da identidade feminina para além da maternidade. Além disso, são parte das transformações a incorporação das mulheres de forma mais diversificada no mercado de trabalho, a ampliação do divórcio e mudanças nos padrões de sexualidade em vários países, o reconhecimento como direitos de questões antes consideradas do mundo privado, como a questão da violência sexista e a legalização do aborto em muitos países.

Tal como ocorreu nas fábricas no fim do século XIX, no neoliberalismo as mulheres foram incorporadas massivamente aos setores da produção e de serviços mais mal pagos que, nesse momento, estiveram marcados pela terceirização e pela precarização.

Por outro lado, um pequeno contingente de mulheres com alta escolarização foi incorporado em funções superespecializadas e executivas. Assim, essas mulheres passaram a ter, diretamente, interesses opostos aos daquelas que estão nos trabalhos precários, mal remunerados, em tempo parcial.

É importante considerar que a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho se deu ao mesmo tempo em que se reafirmava que elas deveriam seguir um padrão estrito de feminilidade. Essa exigência, assim como várias outras mudanças sob o neoliberalismo, se ancorou na modernização tecnológica e na profunda mercantilização dos processos da vida.

O discurso é que as mulheres podem comprar esse padrão de feminilidade usando toda uma parafernália, que vai de cosméticos a tratamentos estéticos, ginástica, botox, cirurgias plásticas. Tudo isso, recentemente, prometido com mais eficiência com a utilização da nanotecnologia.

Com essa intensificação da mercantilização houve um forte incremento do tráfico de mulheres e da prostituição, como parte da indústria do lazer e entretenimento. Nesse debate, muitas vezes são utilizadas justificativas que relacionam esse fato com a busca por liberdade e autonomia das mulheres. Assim, tiram de cena a máfia que movimenta bilhões à custa da exploração forçada das mulheres.

Na atualidade, tem sido mais exposta a tensão que as mulheres vivem com a presença simultânea nas esferas da produção e reprodução. A migração das mulheres dos países do Sul para o Norte tem um componente de solução para essa tensão, uma vez que boa parte das migrantes vai trabalhar na casa de executivas europeias ou norte-americanas, realizando parte do trabalho doméstico e de cuidados.

A crise na sociedade e na economia capitalista é também uma crise em seu modelo de reprodução baseado na utilização do tempo de trabalho das mulheres como um recurso inesgotável2.

Mas é inegável que profundas transformações ocorreram não só com as mulheres escolarizadas, mas também com as das camadas mais pobres. Essas mudanças estão vinculadas às suas práticas concretas, embora estejam marcadas por uma extrema complexidade. Por exemplo, a desresponsabilização dos homens pela paternidade e o aumento das mulheres que arcam sozinhas com o sustento dos filhos, a gravidez na adolescência, a violência urbana e envolvimento dos filhos com o tráfico.

Fruto do esforço de análise das feministas, cada vez mais mitos são desfeitos, como o de que as relações sociais se baseiam em famílias com um homem provedor e uma mulher reprodutora. Além da visibilização do aspecto econômico do trabalho doméstico, hoje já não é possível ocultar que nenhuma sociedade pode prescindir do trabalho produtivo das mulheres, seja no campo ou na cidade. E que, em cada família onde as mulheres não estão no mercado assalariado, mais bens e serviços são produzidos no âmbito doméstico.

Em momentos de crise, ou quando há desemprego na família, as mulheres são obrigadas a esticar os recursos, o que em geral significa mais sobrecarga de trabalho. Por exemplo, serviços que eram adquiridos no mercado voltam a ser produzidos no âmbito doméstico.

É necessário dizer que há pouco debate e análises sobre que tendências estão colocadas em termos de rupturas e deslocamentos que se darão nas relações de gênero e na vida das mulheres com a crise atual.

Em outro momento poderíamos dizer que haveria redução do emprego das mulheres para garantir o emprego do homem provedor. Mas já não é mais possível fazer automaticamente essa análise em função das mudanças ocorridas nas práticas e nas representações de homens e mulheres, inclusive no mercado de trabalho.

Para citar um exemplo, o jornal O Estado de S. Paulo3 trouxe há algumas semanas um artigo sobre os cursos profissionalizantes para pessoas atendidas pelo Programa Bolsa Família. O texto mostrou que na construção civil prefere-se mulheres como azulejistas porque elas são mais cuidadosas. Isso poderia ser analisado como uma ampliação do mercado de trabalho das mulheres e do reconhecimento de sua qualificação – cuidadosa. Mas, em geral, as mulheres azulejistas ganham menos do que os homens, na mesma função. Esse é um bom exemplo da reacomodação da Divisão Sexual do Trabalho e das práticas sexuadas em que se empurra o gênero para o sexo biológico. E as habilidades e o trabalho das mulheres continuam menos valorizados e sem reconhecimento.

Outro elemento é que a criação de empregos e frentes de trabalho emergenciais, comuns em tempo de crise, normalmente excluem as mulheres.

Além disso, sendo a crise atual uma crise sistêmica, ela expressa a falência desse modelo em distintas esferas. As respostas de mercado significam mais concentração de riqueza, exploração do trabalho de homens e mulheres e reacomodação das desigualdades.

Trata-se de pensar quais transformações e quais respostas são necessárias para que nas crises não se busquem novas formas de continuar utilizando as desigualdades de gênero em co-extensividade com as relações de classe e raça, para manter as mulheres fixadas em um lugar naturalizado que afirma uma suposta essência feminina e nega o direito à autonomia e à liberdade para as mulheres.


* Nalu Faria é coordenadora da REMTE (Rede Latinoamericana Mulheres Transformando a Economia) e da Marcha Mundial das Mulheres no Brasil.


1 Danièle Kergoat. “Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo” In Trabalho e Cidadania Ativa para as mulheres. Caderno da Coordenadoria Especial da Mulher, São Paulo, 2003.

2 Nalu Faria e Miriam Nobre, A Produção do Viver. Cadernos Sempreviva, São Paulo, 2003.

3 O Estado de S.Paulo, 22-02-2009


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